Na bacia do rio Kunene, a água desempenha um papel importante na cultura popular. Influencia os modos de vida tradicionais e constitui parte das crenças e rituais.

População rural retirando água de um poço tradicional escavado manualmente.
Fonte: AHT GROUP AG 2009
( clique para ampliar )
Os Modos de Vida Tradicionais
Na bacia do rio Kunene, os modos de vida tradicionais estão bem adaptados às condições naturais existentes como, por exemplo, a escassez de água, as inundações sazonais e as sempre presentes alterações das estações.
Os exemplos que se seguem foram retirados do livro Patterns of Settlement and Subsistence in Southwestern Angola (Urquhart 1963) sobre os padrões de assentamento e subsistência no sudoeste de Angola, que descreve os modos de vida indígenas na província angolana de Huíla na década de 50 (que forma actualmente as Províncias de Huíla e do Kunene). Nos últimos 60 anos registaram-se alterações significativas na bacia. Durante a guerra civil de Angola (1975-2002), a população da bacia viveu uma relocalização em massa, das áreas rurais para as áreas urbanas. Este e outros eventos alteraram a composição da população da bacia e a sua cultura. Contudo, alguns dos exemplos apresentados de padrões tradicionais de utilização da água ainda são válidos hoje em dia.
A Água e os Padrões de Assentamento
Na bacia do rio Kunene, onde a aridez geral é acentuada por longas estações secas e onde os afluentes permanentes apenas existem a montante, existe uma estreita correlação entre o local de povoamento e o abastecimento de água.
As povoações estão, por conseguinte, concentradas onde existe acesso a água superficial:
-
Próximo de nascentes permanentes;
-
Ao longo de rios perenes, como o próprio rio Kunene e os seus afluentes a montante;
-
Ao longo de rios formados nas estações de chuva, como os rios Kaculuvar e Chitanda, onde as talas (lagos e poças de água permanentes em zonas baixas de leitos de cursos de água) persistem ao longo da maior parte da estação seca; e
-
Próximo de mulolas e chanas (depressões que contêm água durante a estação das chuvas e, pelo menos, durante o período inicial da estação seca).
Durante a estação das chuvas e o início da estação seca, a população obtém água potável de:
-
Rios perenes e formados na estação das chuvas; e
-
Talas, mulolas e chanas.
Durante a estação seca, a população obtém água de:
-
Rios perenes;
-
Poços escavados nastalas, mulolas e chanas secas; e
-
Cacimbas(reservatórios) escavadas nas mulolas e chanas para armazenamento de água ao longo da estação seca.

Gado bebendo do rio Kunene.
Fonte: Tump 2005
( clique para ampliar )
A Água e a Agricultura
As populações da bacia não necessitam apenas de água para beber, como também para o cultivo de cereais, vegetais e frutos. Na bacia do rio Kunene, as zonas superiores e centrais recebem chuvas mais intensas e frequentes que as zonas inferiores. Essas são, por conseguinte, melhores zonas agrícolas, devido à maior fertilidade do solo e à maior disponibilidade de água. Nas áreas em que a precipitação é relativamente elevada e os solos não secam rapidamente é comum existirem bosques; nas áreas em que o solo é arenoso e a precipitação é mais fraca são normalmente cultivados campos adjacentes as mulolas, chanas ou ao longo dos cursos de água.
A Água e o Pastoreio
A criação de gado também requer água. Os animais necessitam de água para beber e de pastos para pastarem, que estão dependentes das chuvas sazonais.
Enquanto a pastagem predomina durante a estação das chuvas, a alimentação à base de folhas e vagens é importante durante uma grande parte da estação seca. No final da estação seca, tanto os pastos como o gado encontram-se no seu pior estado. Após as primeiras chuvas, o gado que acabou de sobreviver a um período de pastagem extremamente pobre passa imediatamente a poder desfrutar de novos pastos suculentos. Com o início da estação seca aumenta novamente a importância de uma alimentação à base de folhas e vagens.
Sempre com a preocupação de encontrar fontes de água, o gado é por vezes levado até pequenos lagos e talas distantes durante a estação seca, ficando amplamente dispersado durante a época de chuva, quando existe água disponível em muitas zonas da bacia do Kunene.
Os Grupos de Língua Herero constituem um caso especial na bacia. Vivem na estepe e nas terras desérticas da bacia do Baixo Kunene, sujeitos ao menor índice de precipitação e às temperaturas mais elevadas. De acordo com a disponibilidade dos recursos hídricos e pastos sazonais, os pastores desenvolveram padrões de utilização da água complexos, deslocando os seus animais de acampamento a acampamento, numa busca contínua de pastos e de água. Os pastores Himba de língua Herero, por exemplo, que habitam na zona namibiana da bacia, deslocam habitualmente o seu gado ao longo de vastas distâncias, minimizando a pressão sobre as pastagens, optimizando a utilização das fontes de água disponíveis e ganhando acesso a pastos remotos (Tapscott 1995/96). Segundo especialistas do sector hídrico, contudo, este contexto de estilo de vida nómada tem vindo a alterar-se nos últimos anos, uma vez que se regista número crescente de habitantes instalados em redor de determinadas infra-estruturas hídricas permanentes em áreas com pastos para o seu gado. Para obter informações adicionais, consulte a secção Conhecimentos Tradicionais.
A caixa de texto que se segue baseia-se num texto que descreve as antigas formas dos Zemba e Hakavona de prover água ao gado nas zonas (inferiores) do Médio Kunene em Angola:
Formas Tradicionais dos Zemba e Hakavona de Prover Água ao Gado
A forma tradicional de provisão de água ao gado praticada pela população de língua Herero é normalmente muito laboriosa. É claro que, na estação das chuvas, quando a precipitação é normal, esta questão não representa qualquer problema; os animais encontram água em lagos formados pelas chuvas ou próxima de pastagens. Nos anos mais secos e na estação seca, a solução para o problema da água torna-se muito mais laboriosa, dado que a região em que os Zemba e Hakavona habitam não dispõe de rios permanentes e os rios sazonais têm leitos argilosos que tornam difícil escavar poços nos mesmos depois de secarem. A escavação dos poços e a tarefa diária de abastecer água ao gado é muitas vezes um trabalho esgotante, em que colaboram homens e mulheres. Retiram a água com baldes, passando-os de mão em mão ao longo de uma fila de pessoas. Os poços muito profundos requerem uma corrente de mais de 30 pessoas posicionadas em escadas no poço, para carregarem a água até à superfície. Para evitar o colapso do poço causado por chuvas torrenciais, cobrem a sua entrada com uma camada espessa de estacas e ramos coberta com terra.
Fonte: adaptado de Estermann 1981